Se não fosse Perseu, o Kraken
teria devorado Andrómeda e não teria sobrado pedra sobre pedra da cidade
de Argos. O semideus, que chegou mesmo a tempo voando sobre Pégaso, o
cavalo alado, com a cabeça da Medusa num saco, conseguiu converter em pedra o
monstro e salvar a população. No fim, para não variar, tudo acaba bem. É um
filme, pelo que se perdoa o desenlace. Nas histórias originais, Perseu e o Kraken
dificilmente se teriam encontrado, já que um é um semideus da mitologia
grega e o outro um animal das lendas nórdicas (possivelmente inspirado pelo
avistamento de lulas gigantes), que só recebeu o seu nome atual no século
XVIII.
Isto é
cinema, e a Sétima Arte nunca mostrou grande respeito ao recriar a história,
quanto mais as fontes clássicas da mitologia! Heróis, deuses e semideuses têm
sido despojados dos aspetos mais negros do seu passado e da sua personalidade,
de forma a aparecerem perante os espetadores como paladinos sem mácula.
Hércules não matou a sua esposa e os seus filhos, e Odin não é, ao seu estilo,
tão trapaceiro como Loki (que, aliás, não é meio-irmão de Thor).
As possibilidades oferecidas pelos efeitos
especiais são uma tentação demasiado forte quando é preciso criar ameaças muito
mais terríveis do que as que se encontram nas crónicas. O confronto entre
Perseu e o Kraken aconteceu nas duas versões cinematográficas de Confronto
de Titãs, realizadas em 1981 e 2010. A aparição das duas personagens
mitológicas deveu-se, no primeiro filme, ao desejo dos produtores de introduzir
todos os monstros presentes nas fontes consultadas, desde que o orçamento o
permitisse.
INSPIRADOS NA ANTIGUIDADE
Quanto às
civilizações, o cardápio tem-se revelado pequeno: Grécia e o mito arturiano
representam a maior parte do bolo. A mitologia grega começou a aparecer no
grande ecrã na época do cinema mudo italiano, em produções nas quais
encontramos, pela primeira vez, personagens como Maciste e Hércules, lugares
como Troia e viagens como a da Odisseia.
Estas
transposições alcançaram o seu apogeu nas décadas de 1950 e 1960, com o auge do
chamado peplum, um subgénero que engloba todas as produções que têm
como pano de fundo o mundo antigo. As películas protagonizadas por César,
Espártaco e Cleópatra não tardaram a juntar-se às que iam buscar as personagens
principais ao mundo helénico, com os heróis de carne e osso da história a
acabarem por ser substituídos pelos da mitologia.
O principal responsável foi
Héracles, ou Hércules, o nome latino pelo qual é mais conhecido nos ecrãs. Em
1958, a adaptação dirigida por Pietro Francisci, com o culturista Steve Reeves
no papel principal, teve grande êxito em Itália e a nível internacional, promovendo
a sua continuação e um sem-fim de imitações nos anos subsequentes. O problema é
que cada uma era mais absurda do que a anterior (num dos filmes, aparecia no
mundo dos maias, noutro enfrentava Sansão, misturando, sem dar grandes
satisfações, a mitologia grega com a bíblica), pese embora tenham dado emprego,
enquanto protagonistas, a muitos ex-campeões do músculo.
Antes de Héracles,
as viagens mitológicas também tinham chamado a atenção da indústria cinematográfica,
começando com a que será a mais conhecida de todas, a Odisseia de
Homero, obra adaptada por Mario Camerini em 1954 com o título de Ulisses.
O filme conseguiu resistir muito bem ao passar do tempo, muito graças aos
cenários naturais dos mares gregos, onde, em parte, foram feitas as filmagens,
e ao forte elenco encabeçado pelos atores Kirk Douglas, Silvana Mangano e
Anthony Quinn.
O mito de Orfeu e Eurídice foi outra produção
que conheceu duas versões muito interessantes: a primeira foi realizada em
1950 por Jean Cocteau, com a ação transportada para a cidade de Paris daquela
época, embora mantendo o espírito da história original e preenchendo-a com a
visão pessoal do realizador e a sua forma única de filmar; a segunda,
intitulada Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus, levou a história para o
Brasil contemporâneo, tendo obtido o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e
popularizado por todo o mundo a bossa nova.
BOBINAS CHEIAS DE MITOS
Em 1963, dá-se o salto para o reino
da pura fantasia, com Os Argonautas, dirigido por Don Chaffey. O argumento
segue com relativa fidelidade A Argonáutica de Apolónio de Rodes, que
relata a busca do tosão (velo) de ouro, embora não passasse de uma desculpa
para encher o ecrã, fotograma a fotograma, com as criaturas animadas que o
mestre dos efeitos especiais Ray Harryhausen criara. Curiosamente, esta
película é recordada pelas cenas que maior liberdade têm em relação à
mitologia, como o despertar do gigante de bronze Talos – muito diferente da
figura mitológica – ou a luta de espadas contra os esqueletos que nasceram a
partir dos dentes da Hidra.
Em 1981,
chegou ao público a primeira versão de Confronto de Titãs, em que
Harryhausen deu vida a uma nova linhagem de monstros destinados a recriar (mais
ou menos) o mito de Perseu e Andrómeda. O remake realizado em 2010
incorporou Hades e tornou-o o vilão da história, mas persistiu na ideia de que
o Kraken devia aparecer, desta vez recriado como um leviatã de
proporções olímpicas, derrotado por Perseu numa sequência de cenas que recriam
a estética dos videojogos, e na qual não faltou um esquadrão de harpias para
animar a luta.
O outro mito preferido dos cineastas, o do rei
Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, foi apresentado em todos os formatos,
do clássico filme de aventuras (Os Cavaleiros da Távola Redonda, Richard
Thorpe, 1953) ao musical (Camelot, Joshua Logan, 1967), passando pela
adaptação da Disney (A Espada Era a Lei, 1963), incluindo algumas visões
mais pessoais que produziram resultados talvez mais interessantes, como o
sanguinolento Lancelote do Lago (1974), de Robert Bresson, ou a
fascinante combinação de misticismo e carnalidade lograda por John Boorman, em Excalibur
(1981). Mais recentemente, tivemos acesso à inevitável versão pós-moderna,
realizada por Antoine Fuqua, em 2004. O filme, Rei Artur, dá uso às
escassas referências históricas sobre a sua figura, situando-o como um general
bretão dos últimos anos do Império Romano. Um processo de desmistificação
similar ao de Hércules (2014), protagonizada por Dwayne Johnson.
VARIAÇÕES DO MESMO MITO
Em muitas das películas sobre Artur, surge o Santo Graal como o
objetivo a alcançar por parte dos cavaleiros. Contudo, o simbolismo deste
objeto, ele próprio um mito perdido da Cristandade, é demasiado forte para se
ficar por aqui. Isto explica por que apareceu em histórias muito diferentes do
que se poderia imaginar para uma demanda santa, como em Indiana Jones e a
Grande Cruzada (Steven Spielberg, 1989), terceiro filme da saga.
O Código Da Vinci (Ron Howard, 2006) já faz referência
a uma outra variante do mito, a que interpreta palavras como “Santo
Graal”/“sangue real” como uma alusão a uma suposta descendência de Jesus
Cristo, tema que foi abordado por estudiosos e romancistas de best-sellers como
Dan Brown.
Esta breve lista não ficaria completa sem a
visão extremamente peculiar que Terry Gilliam deu sobre o Graal, por via de um
dos seus maiores êxitos: O Rei Pescador (1991). Aqui, a busca é feita na
Nova Iorque dos anos 90, com o enredo invadido por uma atmosfera de loucura
que, mesmo assim, não abafa a magia da história mítica.
BASEADO NO FANTÁSTICO
Nova Iorque
foi igualmente o cenário de Q – A Serpente Voadora (1982), de Larry
Cohen, uma das escassas adaptações da mitologia asteca, com o deus Quetzalcóatl
convertido num monstro devorador que tem o seu ninho no topo do edifício
Chrysler. Outra adaptação muito particular e que não pode ser esquecida é a da Odisseia,
realizada pelos irmãos Coen em Irmão, Onde Estás? (2000), que converteu
a viagem de Ulisses num périplo pelos Estados Unidos durante a Grande
Depressão.
Recentemente,
o cinema fixou a sua atenção noutros mitos, embora esteja mais atraído pelas
possibilidades de entretenimento que podem ser extraídas dos por menores mais
básicos das histórias e das personagens, tudo complementado por mundos e
cenários criados em computador.
Foi assim que o poema épico Beowulf, nunca antes transposto
para a Sétima Arte, conheceu várias adaptações cinematográficas nos últimos 15
anos. A de Robert Zemeckis (2007) foi, talvez, a que mais se destacou. Quatro
anos depois, pudemos ver pela primeira vez no cinema o deus viking Thor,
numa realização a cargo de Kenneth Branagh. O problema está em que as
personagens interpretadas por Chris Hemsworth (Thor) e Tom Hiddleston (Loki)
não se baseiam nas lendas nórdicas, mas na adaptação que a editora de banda
desenhada Marvel Comics fez nos anos 60, quando adaptou a história para os
quadradinhos.
GUERRA DE CARTAZES
Desde
então, o esquema básico tem vindo a ser repetido continuamente, com todo o tipo
de variações que foram permitidas aos guionistas: Thor e Odin, pai e filho, são
bons e nobres, enquanto Loki, o meio-irmão malvado, se quer apoderar de
Asgard. Nas fontes originais, Odin chega a ser tão mau como Loki; este último,
por sua vez, é bem menos sanguinário do que na lenda, embora tenha uma
tendência para meter os outros em apuros.
Herdeiros
da lógica
A mitologia não precisa
de Hércules ou Zeus para estar presente no cinema moderno. Em O Herói de Mil
Faces (1949), uma obra clássica da literatura, Joseph Campbell estabeleceu
uma fórmula a que deu o nome de “a viagem do herói”, um esquema básico de
personagens e situações que, com diferentes nuances, pode ser encontrada
em todas as sagas heroicas, da Antiguidade aos nossos dias: protagonistas
órfãos, de pais desconhecidos, ignorantes de que guardam no seu interior um
poder único que os levará a conseguir façanhas impossíveis. Contarão para a
sua demanda com um companheiro ou ajudante que estará sempre a seu lado, um
mentor, substitutivo da figura paterna, que os guiará com a sua sabedoria e um
interesse romântico. Estes elementos (e outros) estão presentes em sagas como
as de Harry Potter, O Senhor dos Anéis ou Star Wars. O
próprio George Lucas reconheceu, em várias ocasiões, que Campbell foi uma das
grandes influências ao criar o seu universo galáctico. Não é de estranhar que
Thor seja conhecido hoje em dia pela sua versão de super-herói (Hércules também
chegou a ser reciclado como personagem da Marvel), pois estas personagens, com
o Super-Homem à cabeça, tomaram o lugar dos mitos da Antiguidade. Godzilla e
os dinossauros de Parque Jurássico foram, por exemplo, os substitutos
dos monstros que surgem nas lendas. Uma das últimas sagas cinematográficas para
o público infantil, Percy Jackson, dá um passo à frente e transforma as
suas personagens em versões adolescentes, do século XXI, dos deuses gregos.
Seja na forma de super-heróis, ou escondidos com outros nomes, parece que a
Sétima Arte continuará a dar-nos mitologia por muito tempo.
Apesar de todas as alterações, os mitos mantêm-se imortais
Indo pela
mesmo caminho, é um erro pensar que 300 (Zack Snyder, 2006) pretende ser
uma recriação da mítica batalha das Termópilas, quando o próprio realizador
declarou abertamente que o que estava a levar ao grande ecrã era o comic de
Frank Miller: esta versão em banda desenhada, por si só, adotou de uma forma
bastante livre o relato original, convertendo os espartanos numa mescla de
super-homens com fuzileiros norte-americanos.
A representação de batalhas míticas
no cinema costuma estar sujeita a importantes metamorfoses. Por exemplo, Troia
(Wolfgang Petersen, 2004) prescinde dos deuses que, na Ilíada de
Homero, a obra em que se baseia o filme, têm um papel tão central como os mortais.
Mais: a duração da guerra é encurtada de anos para semanas, e personagens que
morrem no livro sobrevivem na versão para cinema, e vice-versa.
Parece que a Sétima Arte está
fadada, quando recorre aos mitos, a pensar mais no entretenimento e nos
elementos capazes de hipnotizar e cativar o público, mas não há razões para
escândalo: foi precisamente esse um dos principais papéis dos mitos e das
lendas durante séculos. Primeiro foi a palavra falada, em seguida o papel, e
agora as salas de cinema e o DVD. O importante é que os mitos, com todas as
suas alterações, sigam caminho, mantendo-se imortais no ecrã e na memória
coletiva.
V.F.B.
Fonte: Super Interessante. Janeiro 2016. Mitos e lendas
de todos os tempos.